Europa: visitas não se queixam do jantar

(Daniel Oliveira, in Expresso, 23/05/2024)

Daniel Oliveira

Apesar de confiarem mais na Comissão Europeia do que no governo, só 44% sabem o nome da suapresidente; apesar de confiarem mais no Parlamento Europeu do que na Assembleia da República, só 47,5% identificam um eurodeputado português. A confiança baseia-se na pouca exposição ao escrutínio popular. A Europa muda quando mudam os governos, sobretudo da Alemanha e França. Ao contrário dos povos que se sentem no direito de discordar e exigir, nós somos os “bons alunos”. Visitas não se queixam do jantar.


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Logo no primeiro debate ouvimos candidatos usarem termos como “defense bounds” ou “critérios de Copenhaga”, tornando o discurso aparentemente menos eficaz, porque incompreensível para a quase totalidade de quem os ouvia num canal generalista. Digo “aparentemente” porque o objetivo, quando se discute um tema relevante para o nosso futuro mas distante das pessoas, era um: mostrar o domínio dos dossiers. Sensação que os comentadores, mesmo quando eles próprios não dominam os ditos dossiers, valorizam.

A forma como se debate a Europa resume bem o principal problema do projeto europeu: determinando a vida de todos, falta-lhe o “demos”. Não é por serem preguiçosos que os políticos escolhem temas nacionais para se confrontarem, nestascampanhas. É porque a “democracia europeia” (ponho aspas, porque o termo é francamente abusivo) não tem povo, não tem comunidade. Quando a comunicação social quer que os candidatos falem mesmo dos “temas europeus”, eles tentammostrar a quem nada sabe do tema que estão tecnicamente bem entregues se votarem neles. Se são estreantes neste tipo de eleições, os debates transformam-se num teste de “cultura europeia”, em que brilha mais quem menos se fizer entender.

Com candidatos sem grande passado nesta frente política, o debate facilmente se transforma numa espécie de entrevistasde emprego para administrador não executivo. Não vai mandar grande coisa num parlamento muito limitado no seu poder de iniciativa, mas será bem pago. Sim, é na Europa que se decide quase tudo. Mas, e talvez não seja boa ideia dizer isto aos eleitores, não é no Parlamento Europeu. A Europa muda quando mudam os governos nacionais, sobretudo os da Alemanha e de França. Até o presidente da Comissão Europeia é, de facto, escolhido assim. No nosso caso, resta-noscumprir o papel de “bom aluno”, que assumimos com um complexado prazer.

Os debates são fracos porque, quando não há um eurocético na sala, tudo se resume a medir a intensidade do europeísmo não fica grande coisa para discutir. Como vimos, o PSD tem um discurso ambiental para dentro, mas alinha com o PPE lá fora; o PS é contra o Pacto das Migrações, mas votou a favor, como os socialistas europeus. Quem se apresenta como “bom aluno” da Europa não dispensa apenas a soberania política, dispensa a convicção política. Porque, apesar do seu suposto europeísmo, se comporta como uma visita em Bruxelas.

barómetro da Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre a Europa concluiu que os portugueses acham que as instituições europeias são mas confiáveis do que as nacionais: 37% confiam no Governo português e 65,5% na Comissão Europeia; 38,3% confiam na Assembleia da República, 66% no Parlamento Europeu. Estranhamente, 85% acham que o seu voto nas eleições europeias conta para o destino da UE (apesar de elegerem 3,3% dos seus deputados), mas só 31% foram votar em 2019; e apenas 49% acreditam que votar tem impacto nas eleições nacionais (elegendo 100% dos deputados com muito mais poderes legislativos), mas foram, há uns meses, 60% às urnas. Nem os portugueses parecem levar muito a sério em atos o que dizem sobre a Europa.

Esta confiança não resulta de um aprimoramento da democracia europeia, mas do oposto. Menos exposta ao escrutínio, é raro ser as instituições europeias serem responsabilizadas pelos problemas concretos das pessoas, como a inflação ou o preço das prestações das casas determinado por um aumento cego das taxas de juro que não tem em conta as especificidades de cada país (como o peso das taxas variáveis). As responsabilidades da catastrófica reação europeia à crise financeira de 2008 foram atribuídas a Sócrates, as da austeridade estupidamente imposta foram atribuídas a Passos e as da recuperação a Passos ou a Costa, conforme a simpatia política de cada um. Barroso e Draghi não estão, para o mal ou para o bem, nas contas de ninguém.

A prova de que a ignorância dos eleitores é uma bênção para os poderes europeus – e por isso Bruxelas é tão apetitosapara todos os lóbis – é o conhecimento que os mesmos que confiam nos poderes europeus têm deles: apesar de confiarem mais na Comissão Europeia, só 44% sabem o nome da sua presidente, apesar de confiarem mais no Parlamento Europeu,só 47,5% conseguem identificar um único eurodeputado português

Os portugueses também acham que Portugal beneficiou com a adesão ao euro, facto que praticamente todos os números da nossa economia nos últimos 25 anos desmentem. Mas as más notícias destas duas décadas perdidas foram nacionalizadas e atribuídas a “governos socialistas”, “falta de ambição” e outras coisas mais ou menos vagas, não a uma moeda que mudou radicalmente o nosso contexto económico e que nunca foi pensada para nós.

A confiança nas instituições europeias baseia-se na sua pouca exposição ao escrutínio popular (não falo de escrutínio interno). Se os olhos não vêem, o coração não sente. Quanto mais intensa é a democracia, maior o desgaste do poder. E não existe propriamente uma democracia europeia. Por isso, quem defendende os dogmas neoliberais olha para o projeto nascido em Maastricht com tanta simpatia. Sem povo fica tudo mais fácil.

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Voltando aos debates, mesmo temas sensíveis, como o inumano Pacto das Migrações, que aceita separar menores dos seus pais, ou o alargamento Leste e à Ucrânia (já nem falo das novas regras orçamentais, que foram aprovadas sem serem tema em Portugal) são debatidos do ponto de vista moral ou administrativo, nunca político. Entre a aceitação do alargamento, com base numa ideia de dever para com os ucranianos e não do efeito que isso terá na Europa, e o fatalismo da desgraça que o contínuo descentramento da União para Leste significa para nós (atribuirmos essa desgraça ao governo de turno), ninguém perde tempo a debater as compensações poderíamos exigir. Os franceses, com a sua agricultura, não deixarão de o fazer. Porque se sentem membros plenos desta UE, com o direito a discordar e a exigir.

Já nós, continuaremos a avaliar os “bons alunos” que mandamos para a Europa, esse lugar distante a que agradecemos pertencer sem fazer perguntas ou exigências. Para quem faça perguntas ou mostre resistência está guardado o degredo do pior dos insultos políticos: “eurocético”. Quase um sinónimo de ser inimigo da democracia, nacionalista, xenófobo. Porque não é esse o nosso lugar na Europa. Visitas não se queixam do jantar.

12 pensamentos sobre “Europa: visitas não se queixam do jantar

  1. Eles podem até ser, e são, eunucos, mas nem por isso menos perigosos. Mais ainda quando estão borrados de medo do temporal que se agiganta no horizonte e do inevitável fim da era de criados de barriga cheia. Cheia de migalhas rançosas, é verdade, porque a barriga do patrão é bem maior e mais fina, mas ainda sim cheia. Merda para a criadagem castrada.
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    “Georgian PM accuses EU of ‘blackmailing’ him with assassination threat

    The bloc is trying to intimidate Georgia over its foreign agents law, Irakli Kobakhidze has said

    Georgian Prime Minister Irakli Kobakhidze has claimed that a European commissioner told him he could end up suffering the same fate as Slovak Prime Minister Robert Fico, who survived an assassination attempt last week.

    In a Facebook post on Thursday, Kobakhidze said that the unnamed commissioner warned him during a recent phone call that the West would take “a number of measures” against him if his government pressed ahead with a law requiring foreign NGOs in Georgia to disclose their funding.

    “While listing these measures, he mentioned: ‘you see what happened to Fico, and you should be very careful’,” he wrote.”
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    Aqui:
    https://www.swentr.site/news/598129-georgia-slovakia-pm/

  2. Mas alguem divida que o atentado contra Robert Fico não teve dedo desta gente?
    Uma gente que apoiou e apoia sem reservas o regime ucraniano, uma gente que fecha os olhos ao genocídio Israelita, uma gente que nos afogou em taxas de juro, uma gente que comprou 70 doses de veneno a que se chamou vacinas covid por cada desgracado habitante da União europeia claro que também avançaria para o assassinato.
    Se fosse ao PM georgiano tratava de levar a sério a ameaca e de cobrir as costas.
    E, porra, quem não deve não teme. Qual é o problema de um Governo querer saber quem financia as ONG estrangeiras. Terão medo que se descubra que é a CIA? Como quem financiava uma tal Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento?
    Quanto ao facto de os tugas confiarem mais nas instituições que nos lançaram um balde de miseria para cima, nos aumentaram as taxas de juros, nos estão a empurrar para uma guerra que no nosso Governo, só posso plagiar mais uma vez o Joaquim.
    Slava burriquini.

  3. Em 70 anos de reinado, Elizabeth II, visitou 117 países.
    https://www.timeout.com/news/heres-every-country-queen-elizabeth-ii-visited-in-her-70-year-reign-090822

    Ao contrário de uns que acham que Portugal, deve ajoelhar, dar a face, dar mais alguma coisa (wokismo ‘oblige’) e pagando por cima.

    Elizabeth nunca visitou Israel.

    Tinha memória, coisa que falta por cá a muita gente, estou a pensar nos que na AR não acompanham uma certa ideia de Portugal e perdoam o imperdoável.

    O motivo:
    https://www.unz.com/article/august-1947-kristallnacht-in-the-uk-in-response-to-jewish-anti-british-terrorism-in-palestine-to-the-sergeants-hanged-in-palestine-affair/

    • Pois, e toda a gente sabe que Lord Balfour, a barriga que, em nome de Sua Majestade, pariu o monstro, era chinês…

  4. Burros ou borregos, vai tudo dar ao mesmo. Não se pode plagiar tudo.
    O terrorismo sanguinário de Israel contra os britânicos na Palestina e outra historia que quem sabuja ante um estado sanguinário quer que fique bem esquecida.
    E aquilo foi mesmo uma sangria desatada. Até mulheres estriparam soldados e houve prisioneiros a balancar na ponta de uma corda sem mais espinhas.
    Os sionistas, aqueles pobres perseguidos não queriam esperar. Não queriam que lhes fossem impostas regras quando se tratasse de expulsar quem quer que ocupasse a “terra sem povo” que há milénios lhes fora dada pelo próprio Deus.
    O terrorismo Israelita, que culminou na bomba contra o Hotel Rei David, matando uns 70 oficiais britânicos foi um acto de crueldade puramente desnecessário.
    Os ingleses queriam Israel. Queriam livrar se de sionistas na sua terra pelo que trataram de os confinar, meter em barcos e ala. Perceberam cedo o potencial que aquela gente tinha para desestabilizar toda uma região rica em petróleo.
    Pelo que era uma questão de esperar.
    Mas esse terrorismo foi necessário para provar ao mundo que também eles eram eficientes a matar. Aliás, tão eficientes ou mais que os nazis que lhes deram o pretexto perfeito para se instalarem numa terra que não lhes pertencia. Queriam tambem mostrar que matariam quem quer que se atravessasse no seu caminho.
    Qualquer infiel, que não fizesse parte da nação escolhida por Deus, que se atravessasse no seu caminho, seria morto como um cao. A partir daí seriam eles a ditar as regras.
    Talvez isto explique porque é que a extrema direita hoje é anti islâmica e pro Israelita. Qualquer dirigente de extrema direita que dissesse de Israel o que diz dos muçulmanos tinha uma bomba no carro ou um tiro nos cornos em menos de um foguete.
    Na melhor das hipóteses, em boa parte dos países europeus, era preso ou multado com tudo o que tinha por antissemitismo. Provavelmente também a legislação castradora existente em muitos países europeus visa justamente por em sentido qualquer cabeça quente.
    E dizer aos assassinos sionistas “tenham calma, não é preciso por bombas nem dar tiros, reservem isso para os árabes sujos, nós meteremos na cadeia ou arruinaremos quem der um pio”.
    Porque eles sabem muito bem que essa gente é capaz de matar qualquer um. E não seria fácil justificar o apoio a Israel se o carro de um qualquer político explodisse ou esse político fosse morto a tiro. Mesmo que se tratasse de um político de extrema direita. Como é que íamos poder continuar a dizer que terrorismo é coisa exclusiva de árabes?
    E que esta gente sabe bem que não são só os palestinianos que são “animais humanos”. Somos todos nós. E se for preciso matar, matasse.
    O terrorismo Israelita foi também um aviso a todos quantos viviam na Palestina, “se fizemos isto aos ingleses imaginem o que lhes faremos a vocês”.
    E o que fizeram desde há 75 anos a esta parte foi matar, violar, torturar, expulsar. Enfim, uma sangueira desatada.
    Mas o Ocidente continua a ser o sabujo de Israel talvez também por saber que se o terrorismo messianico se voltar contra nós não vai ser bonito.
    E que aquela gente sanguinária tem pelo menos 200 bombas nucleares.
    Já nem vou buscar o poder económico dos sionistas.
    E depois temos coisas como o mais alto magistrado de uma nação a dizer ao representante de um povo massacrado há 75 anos que desta vez foram eles que começaram.
    O que estes meses de genocídio também teem sido ferteis é em gente a perder oportunidades de ficar calado. Essa sem dúvida dará parte do Top 10 se não receber a medalha de ouro.
    A verdade é que criamos um monstro e agora ninguém sabe como o voltar a meter na caixa.
    Ma sorte para quem tem a desdita de ser vizinho desta gente.
    O Presidente do Irão e o seu Ministro dos Negócios estrangeiros foram ontem a enterrar.

    • Híbridos, burros e borregos ao mesmo tempo, dois em um, não um milagre da Natureza mas uma genial criação laboratorial, “manufactoring consent” e petiscando tremoços entre duas reconfortantes e aliviantes cagadas, como diria o Chomsky.

      Slava borreguini! Mééééééé!

  5. Ui, Portugal confia tanto nas instituições europeias…cegamente!!! Ai a senhora “FondarLeyna” merece também uma confiança abismal (ela que até comprou as vacinas mais caras do mercado, mas foi à empresa do marido, ficou tudo em família!). Enfim, que confiança merece este “barómetro” da Fundação Francisco Manuel dos Santos, ou seja um estudo de encomenda, criado pelos donos do Pingo Doce, empresa que nem sequer paga impostos em Portugal, mas que os prefere pagar na Holanda?! Vive à custa do dinheiro dos portugueses, mas dá os lucros aos holandeses…. Estudos desta fundação valem tanto como um inquérito feito na Feira do Relógio pelo ti Chico da Gandaia sobre subprimes resilientes e bitcoins inclusivos.

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